Vamos direto ao ponto: 1000xRESIST não é um jogo fácil de classificar, e talvez essa seja sua primeira grande vitória. Desenvolvido pela belíssima e desconhecida (até agora) desenvolvedora independente, o jogo chega como uma daquelas experiências que a gente sabe que vai dividir opiniões desde o primeiro minuto. Se você está procurando por ação frenética, mecânicas complexas ou um gameplay tradicional, pode ir passando reto. Mas se a ideia de uma narrativa densa, política e profundamente humana, envolta em uma estética audiovisual única, te atrai, então você pode estar diante de uma daquelas pérolas raras que a gente encontra de vez em nunca.

A primeira coisa que salta aos olhos, literalmente, são os gráficos. A escolha estética não é sobre realismo ou poligonagem contarada. É sobre atmosfera. O jogo utiliza uma mistura de ambientes 3D estilizados com uma paleta de cores muitas vezes suja, opressiva, e em outros momentos, onírica e surreal. Os cenários, especialmente os que representam os espaços da “Mãe” e os flashbacks, tem uma qualidade quase pintada, lembrando um pouco aquelas ilustrações de livros de ficção científica dos anos 70. Os modelos de personagens, todas clones da protagonista Iris, são intencionalmente idênticos, e a beleza tá justamente em perceber as nuances de personalidade através de expressões mínimas e diálogos, já que os rostos são os mesmos. Não espere efeitos espetaculares de partícula ou iluminação ray tracing. A força visual tá na composição de cena, no enquadramento quase cinematográfico das sequências mais importantes, e na forma como a arte serve à narrativa, criando um mundo que é ao mesmo tempo claustrofóbico e infinitamente expansivo na sua simbologia.
No campo do som, é aqui que o jogo crava uma parte fundamental da sua identidade. A trilha sonora é um personagem por si só. Ela alterna entre silêncios angustiantes, ambientes eletrônicos minimalistas e crescendos orquestrais emocionantes nos momentos de clímax narrativo. A mixagem de áudio é feita com uma intenção clara: imergir você no estado psicológico da personagem. Os sons dos passos ecoando em corredores vazios, o sussurro das “irmãs”, o barulho estático de memórias corrompidas – tudo é muito bem colocado. Um ponto ABSURDAMENTE importante e que merece todo o destaque: o uso dos idiomas. O jogo tem períodos em que os diálogos são em cantonês e mandarim, e a opção de legenda em português (ou outras línguas) não só traduz, mas muitas vezes indica qual idioma está sendo falado. Essa não é uma mera escolha de localização, é um pilar temático central. A disputa linguística, a perda de uma língua materna (o cantonês) para uma língua imposta (o mandarim) é parte crucial da metáfora política que o jogo constrói. Ouvir essa alternância, mesmo sem entender, é fundamental para a experiência. A dublagem, pelo que pude sentir na versão original, é carregada de uma emoção contida que explode em momentos chave, funcionando muito bem.

A jogabilidade é, sem dúvida, o ponto mais divisivo e onde o jogo mais se afasta do convencional. Chamá-lo de “walking simulator” até cabe, mas é um termo redutor. A interação principal se dá através da exploração de ambientes, muitas vezes não-lineares e cheios de detalhes narrativos escondidos, e da escolha de diálogos em momentos específicos. Não há quebra-cabeças complexos, não há combate, não há mecânicas de progressão no sentido tradicional. Você é, majoritariamente, um espectador ativo, um investigador de memórias. O controle sobre a narrativa vem mais da ordem em que você decide explorar certas áreas ou fazer certas perguntas, o que pode revelar nuances diferentes da história. Para alguns, isso pode ser entendiante. Confesso que em um ou dois momentos da metade do jogo, a sensação de “andar sem rumo” me bateu. Mas é preciso entender que o ritmo propositalmente lento e contemplativo é um convite à reflexão. Você precisa absorver o ambiente, o tom das conversas, o peso do silêncio. A jogabilidade está a serviço da imersão narrativa, sem concessões. Não é para todo mundo, mas para quem se entrega, funciona.
E é na história que 1000xRESIST ergue seu monumento. A premissa – clones de uma única mulher imune a uma praga alienígena, vivendo em uma sociedade distópica sob o culto à “Mãe” original – é só a casca. A medida que você, como a clone Watcher, revê as memórias da Iris original, a narrativa se abre em camadas. Ela fala sobre colonização, sobre perda de identidade cultural, sobre o trauma transgeracional de imigrantes e refugiados. A referência à diáspora de Hong Kong é gritante e intencional, mas a narrativa transcende o específico para falar sobre qualquer povo que tenha sua língua, seus costumes e sua liberdade suprimidos por um poder maior. A construção da sociedade das clones, com sua rigidez, seu controle de pensamento e sua devoção cega, é uma analogia poderosa e dolorosa a regimes totalitários. A história é contada de forma não-linear, exigindo atenção total do jogador para conectar os pontos entre os flashbacks do passado de Iris na Terra e o presente distópico. Os diálogos são densos, filosóficos e muitas vezes poeticamente crípticos. Não é uma história para ser consumida passivamente; ela exige que você pense, reflita e conecte com referências externas. É desafiador e, em muitos momentos, emocionalmente exaustivo, mas de uma maneira que poucos jogos conseguem ser.

Conclusão: Recomendo ou Não?
Recomendar 1000xRESIST não é uma decisão simples. Não é um “jogo” no sentido mais puro e recreativo da palavra. É uma experiência narrativa interativa, uma obra de ficção política e uma meditação profunda sobre memória, identidade e resistência.
Se você valoriza histórias complexas e ambiciosas, que não tem medo de abordar temas espinhosos com uma metáfora de ficção científica afiada, e se dispõe a trocar ação por contemplação e respostas fáceis por questionamentos profundos, então 1000xRESIST é uma obra obrigatória. É daquelas experiências que ficam reverberando na mente por dias após o crédito final. A combinação de sua direção de arte única, trilha sonora imersiva e narrativa corajosa cria algo genuinamente singular.
Por outro lado, se sua prioridade é jogabilidade dinâmica, ritmo acelerado e uma história linear de fácil digestão, as altas chances são de você achar o jogo maçante e pretensioso.
Para mim, pessoalmente, os momentos de lentidão extrema e a escolha por um epílogo um tanto quanto abstrato (que, concordo, poderia ter sido um impacto final mais forte) não ofuscam o brilho da obra. 1000xRESIST é um jogo importante. É corajoso, é diferente, e é uma prova de que os videogames podem ser um veículo para discussões profundas sobre nossa sociedade e nossa humanidade. É, sem sombra de dúvidas, uma das narrativas mais marcantes e bem construídas que já experimentei no medium. Portanto, para o público certo, a recomendação é total e incondicional. É uma viagem difícil, mas cujo destino vale cada momento de desconforto e reflexão.
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